Saúde Animal

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Cinofilia e Arte




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Permito-me abordar esse tema, tido como altamente discutível, pela minha experiência no campo das artes visuais.
Durante dezoito anos orientei artistas que hoje são bem sucedidos.

Nesse tempo, dirigi o Centro de Pesquisa de Arte – Rio de Janeiro, mostrando e ensinando a observar formas e proporções.

Venho utilizando, tanto esse conhecimento quanto a facilidade de avaliar as formas, adquirida pelo hábito de observar e analisar obras de arte, como instrumento que me proporciona total segurança durante um julgamento.

A Estética

dobermanpastorEstética, segundo o dicionário Aurélio, é o estudo do belo. Esta palavra vem sendo utilizada como se fosse um sinônimo de beleza com uma conotação de indiscutibilidade.
O belo, entretanto, é deliciosamente discutível, por conter um número tão amplo de variáveis que pode tornar-se altamente excitante.

São questões de ordem geográfica, social, cultural, temporal e, até mesmo, ambiental:

Se você aparecer, elegantemente vestido, na praia, causará um impacto semelhante ao que causaria um passeio de biquine na Av. Rio Branco ou numa reunião de diretoria da sua empresa.
Quantas vezes você já deve ter ouvido: “esse vestido é chiquérrimo, mas já está ultrapassado”.

Na realidade, a estética é o estudo filosófico de um movimento artístico, em qualquer setor das artes visuais: abrange desde a estrutura da composição de uma obra barroca de Michelangelo, das transformações transcendentais dos objetos, filosofia desenvolvida pelos surrealistas, até o estudo das proporções, do Suiço Piet Mondriaan, que terminou por influenciar toda a arquitetura moderna, incluindo a estética das teorias do Gestaltismo da “Psicologia da Cor e da Forma”, que a Bauhaus nos legou e que resultou na Escola de Desenho Industrial dos nossos dias.

Em toda filosofia de arte, está presente a busca incessante da harmonia da forma através do equilíbrio de suas proporções.
Forma e proporção estão intimamente ligadas.

O Boxer

Originário da Alemanha, berço da Bauhaus, a criação do boxer, a partir do primeiro exemplar registrado, sofreu influências pesadas, tanto do pastor alemão, quanto do dobermann. O pastor alemão já nasceu com suas orelhas empinadas.

Por ter sido largamente utilizado, tanto na Primeira quanto na Segunda Guerra Mundial, foi a raça que mais se desenvolveu, tanto em quantidade quanto em qualidade. Logo tornou-se o símbolo da espécie canina.

Se pedirmos que uma criança desenhe um cachorro, certamente desenhará uma figura alongada de quatro patas, com orelhas eretas e cauda longa.

Acompanhando a moda, os doberistas, a partir do Conde Luiz Dobermann, planejaram, para sua raça, um cão de orelhas empinadas.

Esgotadas todas as possibilidades dentro do campo da genética, por terem utilizado o rottweiler e o pinscher standard, ambos portando orelhas pendentes, diante do insucesso, resolveram o problema de forma prática: vamos cortar.

Com relação ao dobermann, ainda foi possível justificar, esteticamente, as orelhas empinadas e pontudas que, segundo os criadores, lhe emprestavam uma expressão mais diabólica, por sua forma longelínea e alongada, montando uma figura, de certa forma, coerente.

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O bóxer é uma raça estruturalmente mais atarracada, de linhas curtas e quase todas curvas.

Se você observar o bóxer, agora com sua atenção voltada para a forma e as linhas, perceberá que, a única parte, realmente, retilínea são as orelhas, quando cortadas.

As orelhas aparadas, ficam, incoerentemente, inseridas no topo de uma cabeça que, apesar de ser considerada quadrada, ou melhor cúbica, é toda formada por linhas arredondadas, que lhe confere o aspeto simpático e brincalhão.

O bóxer, ainda que de orelhas pontudas, jamais terá uma expressão diabólica.

É como vestir um terno, usar gravata e calçar tênis.

O Dogue Alemão

doguiComo não poderia fugir à regra, o dogue alemão também sofreu pesadas influências e, há que se admitir, a conchectomia também resolveu o problema da forma, já que o projeto genético, também fora o de uma figura de orelhas empinadas, mas, como todo o molosso de orelhas pesadas, inevitavelmente portaria orelhas caídas.

O ser humano, investido do poder divino de criador, mas sem possuir a dádiva do milagre, não podendo admitir sua falha, aceitou a cirurgia como a única solução, ainda que sem justificar, a não ser pela beleza que só a ele proporcionaria prazer.

Levar um cão adolescente, brincalhão e cheio de saúde, para uma mesa de cirurgia para ensaiar esculturas em seres vivos, sem tentar, ao menos imaginar, qual seria a opinião de seu dogue alemão, sobre seu sacrifício em prol de sua futura beleza, não me soa como válido, partindo de alguém ama seus cães e que realmente deseja para eles uma vida saudável, com um mínimo de dignidade.

O Corte Das Orelhas

corteOs países, culturalmente, mais evoluídos já se deram conta do que, realmente, representa um corte de orelhas ou, como gostam os veterinários, conchectomia.

De acordo com o Regulamento de Exposições, adotado pela FCI e, conseqüentemente, pela CBKC, tudo o que não se deseja é um procedimento cirúrgico, com finalidade de modificar a forma, para melhorar o aspeto visual, ludibriando árbitros e espectadores, com um agravante: na mesma relação das faltas desqualificantes gerais, onde consta a falta de um ou de ambos os testículos, estão relacionados os exemplares aleijados ou mutilados.
As justificativas, comumente utilizadas para realizar essa cirurgia é a estética e a beleza ou a tradição milenar, como justificam os cridores do mastim napolitano que recomendam a amputação quase total: “Nossos mastins foram valentes combatentes nas arenas da Roma Antiga e seu ponto fraco era o par de orelhas que, feridas durante o combate, sangrariam até a morte”.

Será que os Gladiadores, contra os quais o mastim napolitano combatia, também amputavam seus pontos fracos?

Existe uma outra justificativa, ainda mais incoerente, utilizada no padrão do dogue argentino: pontos vuneráveis de muita dor e de copioso sangramento no caso de ferimento durante uma luta.

“Eu sou inteiramente a favor da otetocmia”.

Essa declaração, verbalizada por um cinófilo (indivíduo que gosta de cães) significa, na sua opinião, que para locupletar seu prazer visual, um cão deve sofrer um tratamento pós-operatório, dolorosíssimo, por melhor que se cuide.

É um pós operatório longo. Estende-se dos quatro até, no mínimo, os seis ou sete meses portando, vinte e quatro horas por dia, uma tala ou um capacete bastante incomodo, acompanhado das proibições inerentes ao tratamento, ainda mais incômodas, sem fazer referência aos terríveis e diários curativos, obrigando-o, em muitos casos, o uso de um balde de plástico na cabeça, roubando-lhe, dessa maneira, a melhor parte de sua infância/adolescência. Desde a época em que se inicia a germinação da segunda dentição, estendendo-se por mais de dois meses após completada a dentadura definitiva. Período esse, comparável à idade humana dos oito aos dezesete anos.
Dentre os argumentos que tangem o limiar do absurdo, está um trecho, que faz parte do regulamento de julgamento do padrão do Dogue Argentino: “(El jurado no debe juzgar un Dogo con orejas largas, por lo que debe retirarlo del ring. …)”, como se esse procedimento cirúrgico pudesse, de alguma forma, alterar o potencial genético do exemplar.
Ainda dentro do campo do absurdo, alguns criadores das raças bóxer e dogue alemão, as vezes experientes, exigem um compromisso formal de amputação das orelhas, por parte de seus clientes, alegando que os árbitros em exposições jamais premiarão um exemplar portando orelhas inteiras.

Cabe aqui uma defesa, afinal de contas, também sou árbitro.

Os árbitros poderão avaliar, classificar e premiar somente exemplares que lhe forem exibidos. Se todos os exemplares apresentados em exposições tiverem suas orelhas íntegras, não haverá possibilidade de premiar outra coisa.
Pessoalmente, não posso crer que um árbitro, habilitado a julgar a raça, portanto, conhece o texto do padrão, possa, em sã consciência, emitir uma declaração dessa natureza.
Pessoa alguma, que ame verdadeiramente seus cães, pode defender a idéia de mutilar um dos seus, em troca de alguns troféus, sem falar no risco do insucesso da cirurgia, perdendo, por conseqüência, seu cão para exposições de forma definitiva e na dor que essa cirurgia provoca no seu bolso.

Os veterinários, os únicos que desfrutam alguma vantagem com o corte das orelhas, sofrerão um certo prejuizo com essa tomada de consciência. Entretanto, quando se lembrarem que sua missão é a de cuidar da saúde dos animais, sem dúvida passarão a apoiar a idéia. Permanecerão contra, somente aqueles, cujo objetivo é, apenas, o lucro, sem se incomodar com o sofrimento que acarreta, e que suas habilidades cirúrgicas são as suas únicas qualidades, não se importando confessar incompetência terapêutica. Os competentes ocuparão o tempo utilizado nessas cirurgias, com a cura daqueles que necessitam de seus cuidados profissionais.

Os próprios criadores da raça, em seu país de origem, Alemanha, já se deram conta que, utilizar-se de um recurso cirúrgico, para solucionar um problema de objetivo inalcançável, no âmbito da ciência genética, era mais do que a confissão de despreparo, era um atestado de incompetência, transcrito no Padrão da Raça.

Bruno Tausz
Etólogo
Presidente do Conselho de Cinologia da Confederação Brasileira de Cinofilia
Juíz de Exposição de Todas as Raças
Autor dos livros:
"Linguagem das Cores"
"O Rottweiler"
"Adestramento Sem Castigo"
"Dicionário de Cinologia"